Agora que a poeira parece ter assentado, depois da actualização ao ChatGPT que inundou as redes sociais de imagens replicando o estilo pelo qual se notabilizou o Studio Ghibli de Hayao Miyazaki, e após os jornais terem dado conta — sem grande substância, diga-se — da batalha entre amantes de GenAI e os seus detractores, sugerimos retomar o tema para uma discussão mais longa sobre Direitos de Autor, o conceito de cópia/plágio, e do impacto do uso de imagens geradas por Inteligência Artificial no nosso quotidiano contemporâneo.
O QUE DIZ A LEI
A Convenção de Berna para a Protecção das Obras Literárias e Artísticas, tratado internacional que regula os Direitos de Autor e que sustenta decisões de tribunais em várias partes do mundo desde 1971, garante aos autores os direitos exclusivos sobre os seus trabalhos originais, mas introduz uma noção relevante: o que é protegido no Direito de Autor é a expressão (ou concretização) de uma ideia e não a ideia em si mesma, e logo aqui compreendemos estar em terrenos pantanosos, na medida em que um estilo artístico ou uma técnica artística específica não é, assim, passível de protecção autoral. Fazê-lo seria até uma afronta e um desserviço a muitos outros artistas — olhando para o caso do Studio Ghibli — com grande tradição no Japão e não só (Kitaro Kosaka, Studio Ponoc, entre muitos outros), cujas obras, embora menos conhecidas, se inscrevem na mesma escola de Miyazaki.
No contexto deste confronto entre ChatGPT e Studio Ghibli, fica a noção de que a reprodução de um estilo pode não ser suficiente para se considerar a existência de uma ilegalidade, já que todas as personagens e cenas e narrativas são inteiramente diferentes daquelas que arquitectou Hayao Miyazaki e a sua equipa. Olhando para o United States Copyright Act, que pode ser especialmente relevante por estar a OpenAI sob a sua alçada directa, este estende a protecção não apenas aos casos de cópia ou reprodução sem a devida autorização, mas também aos trabalhos derivativos, isto é, àquelas obras criadas a partir de outras obras. No primeiro ponto, caso de plágio parece-me difícil de justificar: a definição de plágio na Arte é a da imitação parcial ou total de uma obra que o plagiador assina com o intuito de mascarar a verdadeira autoria, assumindo-se ele como o seu criador original. Ora, no caso em debate, não só um olhar crítico revelará facilmente que não se tratam de verdadeiras obras de Miyazaki como a própria indignação generalizada só foi possível por todos sabermos que aquelas imagens não foram realmente feitas pelo Studio Ghibli. Corolário deste argumento: se acreditássemos no contrário, a polémica nunca teria tido lugar. No segundo ponto, o dos trabalhos derivativos, também dificilmente haveria sustentação, uma vez que as imagens dos nossos amigos, colegas e animais de estimação, ainda que interpretados num estilo semelhante àquele que conhecemos ser o do Studio Ghibli, não são pertença de nenhuma das suas obras.

(imagem retirada do Instagram do MNAA)
Em Portugal, um post de Instagram foi particularmente paradigmático, dando origem até a uma petição pública, e permite-me clarificar a ideia do parágrafo anterior. Quando o Museu Nacional de Arte Antiga transformou os painéis de São Vicente numa imagem em estilo Ghibli, mais justo seria dizer, no limite, que o plágio foi feito mais contra o autor dos painéis (Nuno Gonçalves) — pela cópia da composição, pelas personagem reproduzidas etc. — mais do que contra Miyazaki, a quem só reconhecemos o estilo (não passível de registo de propriedade, como já estabelecemos) o que só justifica a posição da Directora do MNAA, que autorizou a publicação, dado que os painéis são propriedade daquele mesmo museu.
Como contraponto, e para tornar tudo mais compreensível, recorro a um exemplo de plágio claro cujo alvo foi a famosa ilustradora francesa Malika Favre:

Imagem retirada do Tribune.com.pk
Aqui, a intenção de fazer uma obra passar por outra é clara, e o estilo tem muito pouco a ver com a questão. Malika Favre não é obviamente a única artista a poder usar vectores, linhas limpas, formas geométricas, e o espaço negativo. Sim, o estilo é semelhante e isso ajuda a convencer o espectador mais distraído de que o plágio é a própria obra da autora francesa, confundindo a autoria e a relação plagiado/plagiador, mas na verdade a mesma imagem desenhada à mão poderia também ser considerada plágio: porque a composição é quase integralmente a mesma, e há linhas que batem quase certeiramente umas sobre as outras: é o homem de pé, vestindo um fato, atrás da mulher sentada, de vestido vermelho decotado a quem ele coloca um colar dourado, é o cabelo da mulher, penteado da mesma forma na franja, é o olhar de dúvida, talvez mesmo receio, que se lê na cara da mulher, são os lábios bem delineados e muito vermelhos, são as sombras na camisa e na franja e nos ombros da mulher… Mas é também, e talvez sobretudo, o tema: o da posição dominante do homem sobre a mulher, o exercício desse poder através da oferta e colocação de uma jóia, etc. Comparando este exemplo com os do Studio Ghibli, as diferenças de caso são claríssimas.
O QUE ESTÁ DE FACTO EM CAUSA
Dissipado todo o nevoeiro e despidos de todas as emoções sobre o caso particular da obra de Miyazaki, o que está verdadeiramente em jogo e que cria choque é, creio eu, a possibilidade de um modelo de Inteligência Artificial conseguir criar imagens que não estariam ao alcance da maior parte de nós e de virem facilitar — como em geral toda a tecnologia faz — o domínio de técnicas que nós, humanos, demoraríamos anos de trabalho árduo a alcançar. Durante anos, artistas amadores de todo o mundo têm trabalhado estilos próximos de Miyazaki — o que na verdade o ChatGPT também é, mera aproximação —, de autores de Manga ou outros, e até criado obras derivativas sem licença (fan art), muitas vezes comercializadas até, que são baseadas em franchises que valem milhões, de Star Wars a Lord of the Rings ou Harry Potter… E quantas acções já vimos interpostas pelos estúdios e criadores dessas obras? Os casos conhecidos são relativamente poucos e raramente chegam à imprensa e às redes sociais.
De facto, a questão comercial não é irrelevante, e o exemplo da ilustradora Malika Favre é paradigmático nesse aspecto, dado que a procura e o mercado que tem tornam para muitos apetecível a tentativa da sua cópia e podem afectar a artista directamente, pela área em que se move. Já no caso do ChatGPT vs Studio Ghibli, o argumento parece-me mais difícil de sustentar, uma vez que as marcas que entraram na brincadeira nos dias seguintes à actualização da OpenAI não representam, com os seus posts, qualquer ameaça ou perda do valor comercial ao estúdio japonês. Numa lógica de grande velocidade e rotatividade de conteúdos, há uma razão para dificilmente vermos artistas reconhecidos a assinar imagens em redes sociais — os valores dificilmente o justificam, pelo menos para a grande maioria das marcas, e exceptuando-se grandes campanhas integradas em vários meios e associadas a produtos de grande escala e/ou valor. A questão quotidiana no marketing digital nunca seria a de contratar o Studio Ghibli ou a de o substituir pelo ChatGPT. A questão, numa óptica de produção de conteúdos em que são criados mais de 200 posts por ano, é a de fazer um determinado tipo de conteúdo ou de não o fazer.
Sejamos claros: a discussão está viciada desde o início, e só surgiu porque um conjunto alargado do público tem uma ligação muito emocional e uma admiração extrema pelo trabalho de Hayao Miyazaki e da sua equipa. E justamente. Também eu me insiro nessa linha de admiradores. Mas não seria intelectualmente honesto ignorar que já antes deste caso o ChatGPT e outros modelos de IA permitiam a criação de imagens baseadas no estilo de outros autores, e que mesmo a actualização ao GPT-4 que trouxe a capacidade de imitar o estilo Ghibli também trouxe a possibilidade de imitar a estética do jogo Minecraft, do Tintim de Hergé ou da estética da Pixar, e poucas ou nenhumas vozes se levantaram em defesa destes últimos.
RESSALVA FINAL
Uma questão diferente e que vale a pena pensar, porém, está relacionada com a forma como a OpenAI treinou o seu modelo para a criação destas imagens. Sem o sabermos de facto, é certamente lícito supormos que o ChatGPT-4 foi alimentado com potencialmente todos os frames de todos os filmes já produzidos pelo Studio Ghibli, o que lhe garantiu uma compreensão alargada do estilo e dos cânones de Miyazaki. Esse uso de imagens específicas protegidas pelo Direito de Autor escapam, na minha leitura, aos direitos de reprodução das plataformas de streaming ou mesmo àqueles associados à posse de um DVD, e esse uso para treino do modelo pode, sim, constituir um ilícito relevante.
Recentemente, o The New York Times abriu um processo contra a OpenAI por entender que o fornecimento de milhares dos seus artigos ao ChatGPT para treinar o seu modelo de linguagem representam um abuso dos direitos de autor que o jornal detém sobre os artigos produzidos na sua redacção, conteúdo original seu. Proponho que fiquemos de olhos neste processo, que se poderá revelar fulcral para a forma como o desenvolvimento de novas Inteligências Artificiais se fará no futuro.