Hugo Almeida
Isto não é um chevrolet.

A Oeste nada de novo: Zuckerberg anuncia fim do fact-checking

O Grupo Meta inverteu a marcha no seu combate à desinformação, anunciou Mark Zuckerberg, CEO do Grupo Meta, a 7 de Janeiro de 2025. Mais do que isso, abandonou-o, naquilo que é uma clara cedência à mundividência dos aliados e evangelizadores do campo político de Trump e Musk. A capitulação de Mark Zuckerberg — que ainda há poucos anos testemunhava perante o Senado, quase em lágrimas, reiterando a inocência e esforços do Facebook em proteger os seus utilizadores e os seus dados — inscreve-se fatalmente no nosso Zeitgeist, mas nem por isso deixou de apanhar de surpresa os profissionais das redes sociais e jornalistas em todo o Mundo.

Em primeiro lugar, pelo discurso em si. Zuckerberg parece ter absorvido a semântica e a retórica dos seus novos amigos, e também já critica os “legacy media”, fala de uma “censura global” e promete trabalhar com Trump para “obrigar governos a recuar por todo o Mundo”, assumindo que as eleições presidenciais norte-americanas marcam um momento de viragem e inauguram uma “Nova Era” para o discurso livre. Toda a semântica usada aponta para a distopia: a mesma que vê Zuckerberg anunciar que as equipas de segurança e moderação de conteúdos do Grupo Meta, que gere parte dos conteúdos que 3 mil milhões de pessoas recebem diariamente vão deixar de estar na cosmopolita Califórnia para passarem a estar sediadas no Texas.

Não deixa de ser surpreendente que se diga que as pessoas têm cada vez menos confiança nas grandes corporações, como os grupos de media, apenas para ver como parecem disponíveis para seguir corporações ainda maiores, centralizadas e opacas, como o Grupo Meta.

Depois, Zuckerberg surpreende ao acusar os fact-checkers usados pelo Facebook, que incluíam alguns dos mais reputados jornais e agências noticiosas mundiais (como o Le Monde, a Reuters, a Agence France-Presse, Agencia EFE, Deutsche Welle, PolitiFact, ou Snopes) de um political bias que não reflectiria já as opiniões maioritárias da sociedade (o mainstream). Assim se arrasa desde logo aquelas que são as bases de uma sociedade democrática onde o jornalismo se supõe pilar essencial, garante de liberdades pela correcção dos factos, promotor de transparência política, contrapeso para os abusos e a corrupção. A leitura de Zuckerberg é decalcada do discurso da direita populista e reproduz uma mentira que tantas vezes tem sido repetida, a de que o fact-checking actua sobretudo sobre a direita política, activamente censurando-a. Neste ponto, Zuckerberg denuncia-se no seu alinhamento político actual. Já existe, hoje, literatura académica suficiente para refutar este suposto bias, demonstrando que é o facto de um determinado quadrante político ser o principal produtor e reprodutor de desinformação que coloca esse maior volume de mensagens na mira dos fact-checkers (ver mais aqui e aqui).

Se um dia Zuckerberg terá acredito numa sociedade de transparência total, hoje parece preferir um modelo de sociedade em que os factos já não têm, eles próprios, a transparência própria da verdade; mais do que isso, parece defender uma sociedade em que verdade e mentira podem ser uma e a mesma coisa, plasticidades que se podem moldar e disputar, narrativas que se podem submeter à vontade das maiorias em formação. Porque não é uma coincidência que a decisão de Zuckerberg venha depois da vitória de Trump, e a poucos dias da sua tomada de posse. Porque Zuckerberg não distingue relações públicas de jornalismo. Não consegue destrinçar diferenças entre um spin e uma notícia, e só pensa em termos de volume, do número de vozes, da quantidade de apoiantes — ou, enfim, do número de votos. É por isso que defende as Community Notes, sem se dar conta de que, não poucas vezes na nossa história, maiorias constituídas apenas pelo volume de decibéis que produzem foram capazes das maiores atrocidades. Além disso, parece esquecer-se de algo que certamente não pode desconhecer: que nas redes sociais são os conteúdos mais polémicos, chocantes ou meramente negativos que circulam com muito maior velocidade e alcance, seja por aqueles que neles acreditam de facto seja por aqueles que não podem deixar de por eles se indignar.

Claro que Zuckerberg sabe tudo isto. A explicação não está na ignorância, mas sim numa dupla vontade, que não acredito passe sequer pelo dinheiro. De acordo com a Forbes, aos 39 anos, Zuckerberg é o quarto homem mais rico do Mundo, pelo que a sua resposta à pergunta de Baudrillard “O que é que vais fazer depois da orgia?” não deva ser muito entusiasmante.

Por um lado, Zuckerberg não quer certamente arriscar posicionar-se contra o novo presidente dos EUA nem contra Musk, homem-forte deste e detentor de uma das maiores redes concorrentes do Grupo Meta — a este propósito, citemos a nomeação de Dana White, CEO da UFC e amigo próximo de Trump, para o Board of Directors do Grupo Meta. Surpreendente para muitos, a nomeação ocorre numa altura em que se esperava que a Federal Trade Commission norte-americana desse novo ímpeto à acção judicial que a 9 de Dezembro de 2020, já durante a primeira Administração Trump, abriu contra o Facebook por abuso de posição dominante e tentativa de monopólio nas compras do Instagram e WhatsApp, e que não teve seguimento durante a administração Biden. Por outro lado, a opção pelas Communithy Notes permite a Zuckerberg um enorme poder de influência e um aumento do controlo sobre as suas plataformas — novamente, o playbook é o mesmo do X/Twitter na Era de Musk. É que, ao contrário do que acontece com os fact-checkers, as Community Notes não são passíveis de avaliação nem, muito menos, de responsabilização. Pior, o seu funcionamento é muito mais opaco. Vale qualquer coisa nas Community Notes? Como se dirime um conflito no seio delas? Que versão dos factos é apresentada, sobretudo nos casos mais difíceis de clarificar? E se a maioria — novamente ela — que votou em Trump também sair vencedora no quotidiano debate que a partir de agora se poderá fazer em torno de qualquer afirmação ou acontecimento? Esqueçamos até a má-fé dos que espalham desinformação. Que iluminado e alargado grupo de cidadãos é esse capaz de investir o tempo e os recursos necessários para a toda a hora descodificar temas complexos, verificar fontes, ir confirmar declarações, averiguar contextos? Não era esse, até hoje, o papel do jornalismo? Que sociedade é essa que já não precisa de jornalismo, sobretudo quando a IA generativa está cada vez mais na ordem do dia? Talvez estejamos de facto a viver no tempo da pós-verdade…

As redes sociais não vão desaparecer, nem é sequer razoável querer que desapareçam. Mas uma educação para a política e para os novos media são cada vez mais necessárias, assim como um dispositivo legal actualizado, robusto e capaz de regular estas plataformas que se têm tornado mais ricas e poderosas do que muitos Estados nacionais. A União Europeia, aqui do nosso lado, representa (ainda) um dos mercados mais importantes para o Facebook e tem este poder, mas é preciso que o exerça. É bom lembrar que um órgão de comunicação social está subordinado a leis próprias para o sector, pode ser responsabilizado directa e até indirectamente por aqueles a quem dá espaço e voz. As redes sociais terão forçosamente de seguir um modelo semelhante, se quiserem ser algo mais do que as câmaras de eco que tantas vezes se acusa de serem, exércitos maiores ou mais pequenos comandados pelos novos senhores feudais a partir de Silicon Valley.

Zuckerberg diz que o fim do fact-checking é um regresso do Facebook às origens, num movimento em prol da liberdade de expressão. O movimento é clássico, assim como o erro. Nenhuma liberdade é absoluta, e a divulgação de falsidades ou declarações não fundamentadas nada tem a ver com liberdade — estamos todos familiarizados com os limites expressos nos conceitos de difamação e calúnia, discurso de ódio, incitação à violência? O que Zuckerberg quer, num mundo digital que só ele domina, e que cada vez mais se sobrepõe sobre o nosso como o tão-citado mapa à escala real do conto de Borges, não é sequer uma aparente anarquia do discurso, ou o discurso em hiper-circulação. O que o dono do Meta quer é poder usar o seu algoritmo para os fins que bem entender. Hoje é Trump, amanhã logo se verá.

Não fiques para trás no mundo do Marketing Digital

Em formato de newsletter semanal, o auto-rádio serve para que estejas sempre a par das principais notícias do marketing digital.

January 21, 2025
January 21, 2025

A Oeste nada de novo: Zuckerberg anuncia fim do fact-checking

O Grupo Meta inverteu a marcha no seu combate à desinformação, anunciou Mark Zuckerberg, CEO do Grupo Meta, a 7 de Janeiro de 2025. Mais do que isso, abandonou-o, naquilo que é uma clara cedência à mundividência dos aliados e evangelizadores do campo político de Trump e Musk. A capitulação de Mark Zuckerberg — que ainda há poucos anos testemunhava perante o Senado, quase em lágrimas, reiterando a inocência e esforços do Facebook em proteger os seus utilizadores e os seus dados — inscreve-se fatalmente no nosso Zeitgeist, mas nem por isso deixou de apanhar de surpresa os profissionais das redes sociais e jornalistas em todo o Mundo.

Em primeiro lugar, pelo discurso em si. Zuckerberg parece ter absorvido a semântica e a retórica dos seus novos amigos, e também já critica os “legacy media”, fala de uma “censura global” e promete trabalhar com Trump para “obrigar governos a recuar por todo o Mundo”, assumindo que as eleições presidenciais norte-americanas marcam um momento de viragem e inauguram uma “Nova Era” para o discurso livre. Toda a semântica usada aponta para a distopia: a mesma que vê Zuckerberg anunciar que as equipas de segurança e moderação de conteúdos do Grupo Meta, que gere parte dos conteúdos que 3 mil milhões de pessoas recebem diariamente vão deixar de estar na cosmopolita Califórnia para passarem a estar sediadas no Texas.

Não deixa de ser surpreendente que se diga que as pessoas têm cada vez menos confiança nas grandes corporações, como os grupos de media, apenas para ver como parecem disponíveis para seguir corporações ainda maiores, centralizadas e opacas, como o Grupo Meta.

Depois, Zuckerberg surpreende ao acusar os fact-checkers usados pelo Facebook, que incluíam alguns dos mais reputados jornais e agências noticiosas mundiais (como o Le Monde, a Reuters, a Agence France-Presse, Agencia EFE, Deutsche Welle, PolitiFact, ou Snopes) de um political bias que não reflectiria já as opiniões maioritárias da sociedade (o mainstream). Assim se arrasa desde logo aquelas que são as bases de uma sociedade democrática onde o jornalismo se supõe pilar essencial, garante de liberdades pela correcção dos factos, promotor de transparência política, contrapeso para os abusos e a corrupção. A leitura de Zuckerberg é decalcada do discurso da direita populista e reproduz uma mentira que tantas vezes tem sido repetida, a de que o fact-checking actua sobretudo sobre a direita política, activamente censurando-a. Neste ponto, Zuckerberg denuncia-se no seu alinhamento político actual. Já existe, hoje, literatura académica suficiente para refutar este suposto bias, demonstrando que é o facto de um determinado quadrante político ser o principal produtor e reprodutor de desinformação que coloca esse maior volume de mensagens na mira dos fact-checkers (ver mais aqui e aqui).

Se um dia Zuckerberg terá acredito numa sociedade de transparência total, hoje parece preferir um modelo de sociedade em que os factos já não têm, eles próprios, a transparência própria da verdade; mais do que isso, parece defender uma sociedade em que verdade e mentira podem ser uma e a mesma coisa, plasticidades que se podem moldar e disputar, narrativas que se podem submeter à vontade das maiorias em formação. Porque não é uma coincidência que a decisão de Zuckerberg venha depois da vitória de Trump, e a poucos dias da sua tomada de posse. Porque Zuckerberg não distingue relações públicas de jornalismo. Não consegue destrinçar diferenças entre um spin e uma notícia, e só pensa em termos de volume, do número de vozes, da quantidade de apoiantes — ou, enfim, do número de votos. É por isso que defende as Community Notes, sem se dar conta de que, não poucas vezes na nossa história, maiorias constituídas apenas pelo volume de decibéis que produzem foram capazes das maiores atrocidades. Além disso, parece esquecer-se de algo que certamente não pode desconhecer: que nas redes sociais são os conteúdos mais polémicos, chocantes ou meramente negativos que circulam com muito maior velocidade e alcance, seja por aqueles que neles acreditam de facto seja por aqueles que não podem deixar de por eles se indignar.

Claro que Zuckerberg sabe tudo isto. A explicação não está na ignorância, mas sim numa dupla vontade, que não acredito passe sequer pelo dinheiro. De acordo com a Forbes, aos 39 anos, Zuckerberg é o quarto homem mais rico do Mundo, pelo que a sua resposta à pergunta de Baudrillard “O que é que vais fazer depois da orgia?” não deva ser muito entusiasmante.

Por um lado, Zuckerberg não quer certamente arriscar posicionar-se contra o novo presidente dos EUA nem contra Musk, homem-forte deste e detentor de uma das maiores redes concorrentes do Grupo Meta — a este propósito, citemos a nomeação de Dana White, CEO da UFC e amigo próximo de Trump, para o Board of Directors do Grupo Meta. Surpreendente para muitos, a nomeação ocorre numa altura em que se esperava que a Federal Trade Commission norte-americana desse novo ímpeto à acção judicial que a 9 de Dezembro de 2020, já durante a primeira Administração Trump, abriu contra o Facebook por abuso de posição dominante e tentativa de monopólio nas compras do Instagram e WhatsApp, e que não teve seguimento durante a administração Biden. Por outro lado, a opção pelas Communithy Notes permite a Zuckerberg um enorme poder de influência e um aumento do controlo sobre as suas plataformas — novamente, o playbook é o mesmo do X/Twitter na Era de Musk. É que, ao contrário do que acontece com os fact-checkers, as Community Notes não são passíveis de avaliação nem, muito menos, de responsabilização. Pior, o seu funcionamento é muito mais opaco. Vale qualquer coisa nas Community Notes? Como se dirime um conflito no seio delas? Que versão dos factos é apresentada, sobretudo nos casos mais difíceis de clarificar? E se a maioria — novamente ela — que votou em Trump também sair vencedora no quotidiano debate que a partir de agora se poderá fazer em torno de qualquer afirmação ou acontecimento? Esqueçamos até a má-fé dos que espalham desinformação. Que iluminado e alargado grupo de cidadãos é esse capaz de investir o tempo e os recursos necessários para a toda a hora descodificar temas complexos, verificar fontes, ir confirmar declarações, averiguar contextos? Não era esse, até hoje, o papel do jornalismo? Que sociedade é essa que já não precisa de jornalismo, sobretudo quando a IA generativa está cada vez mais na ordem do dia? Talvez estejamos de facto a viver no tempo da pós-verdade…

As redes sociais não vão desaparecer, nem é sequer razoável querer que desapareçam. Mas uma educação para a política e para os novos media são cada vez mais necessárias, assim como um dispositivo legal actualizado, robusto e capaz de regular estas plataformas que se têm tornado mais ricas e poderosas do que muitos Estados nacionais. A União Europeia, aqui do nosso lado, representa (ainda) um dos mercados mais importantes para o Facebook e tem este poder, mas é preciso que o exerça. É bom lembrar que um órgão de comunicação social está subordinado a leis próprias para o sector, pode ser responsabilizado directa e até indirectamente por aqueles a quem dá espaço e voz. As redes sociais terão forçosamente de seguir um modelo semelhante, se quiserem ser algo mais do que as câmaras de eco que tantas vezes se acusa de serem, exércitos maiores ou mais pequenos comandados pelos novos senhores feudais a partir de Silicon Valley.

Zuckerberg diz que o fim do fact-checking é um regresso do Facebook às origens, num movimento em prol da liberdade de expressão. O movimento é clássico, assim como o erro. Nenhuma liberdade é absoluta, e a divulgação de falsidades ou declarações não fundamentadas nada tem a ver com liberdade — estamos todos familiarizados com os limites expressos nos conceitos de difamação e calúnia, discurso de ódio, incitação à violência? O que Zuckerberg quer, num mundo digital que só ele domina, e que cada vez mais se sobrepõe sobre o nosso como o tão-citado mapa à escala real do conto de Borges, não é sequer uma aparente anarquia do discurso, ou o discurso em hiper-circulação. O que o dono do Meta quer é poder usar o seu algoritmo para os fins que bem entender. Hoje é Trump, amanhã logo se verá.

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Isto não é um chevrolet.